Mal havia começado a namorar aquele que se tornou meu marido alguns anos mais tarde quando ele me convidou para passar alguns dias no apartamento que seu pai tinha em uma cidadezinha praiana no litoral sul de São Paulo. "Já te aviso", disse ele, "O apartamento está meio abandonado...". "Ué, abandonado por quê??", perguntei, naturalmente curiosa quanto à razão para tal descaso com um apartamento na praia; "é que esse apartamento era um sonho da minha mãe" (a mãe dele tinha morrido jovem, aos 45 anos, dez anos antes de eu o conhecer) "e depois que ela morreu meu pai se desinteressou por ele, e agora deu pra querer vender". Inclusive, a razão pela qual estávamos indo pra lá, disse, era justamente porque seu pai queria pesquisar o valor do apartamento para colocar sua intenção de vendê-lo em prática.
Alguns dias mais tarde, fizemos as malas e fomos para a praia, meu namorado, meu futuro sogro e eu. A viagem foi curta, e ao chegarmos lá fomos imediatamente descarregar o carro. Como meu sogro queria já levar algumas coisas pessoais embora, tínhamos levado muitas caixas vazias, e por isso tivemos que fazer várias viagens ao apartamento e de volta ao carro. Na primeira dessas viagens, entrei no quarto de casal, que meu sogro dividira com sua esposa, para deixar umas caixas. Tendo acabado de viajar, minha inevitável vaidade feminina me fez olhar no espelho que havia em cima de uma cômoda, para checar o estado do meu cabelo. O cabelo até que não estava ruim, mas reparei que, por alguma razão que não sabia explicar, o quarto que via refletido no espelho me pareceu diferente do que o que eu vira quando tinha entrado nele. "Que coisa bizarra", pensei. Mas, sendo de natureza prática, ignorei essa impressão e me apressei a descer novamente para ajudar a trazer o restante das coisas.
Quando terminamos de levar tudo, foi a hora de criarmos coragem para limpar o apartamento, que realmente estava num estado lastimável; fazia pelo menos um ano que ninguém sequer entrava nele, e a poeira, unida à maresia, cobria com uma camada espessa, esbranquiçada e pegajosa cada móvel do lugar. Depois da sala e do banheiro, foi a hora de limpar o quarto do meu sogro. A primeira coisa que notei quando entrei nele foi que o espelho tinha sido tirado de cima da cômoda. "Alguém deve tê-lo levado para a área de serviço para lavar", pensei. Mas quando eu fui até a área pegar mais panos, o espelho não estava lá. A essa altura, estava bastante intrigada e perguntei, então, ao meu sogro, se ele sabia quem havia tirado o espelho do quarto, e onde ele estava. Mal havia perguntado, reparei que ele havia ficado visivelmente pálido. Meu namorado, que tinha me ouvido, se apressou a perguntar, de que espelho eu estava falando? "Ora, do espelho que estava em cima da cômoda, no quarto de casal!" Eu tinha me olhado nele quando entrei lá, há menos de duas horas! Meu sogro permanecia mudo. Seu rosto, no entanto, expressava sua visível consternação. Foi meu namorado que finalmente retrucou: "Mas o espelho que tinha lá foi tirado logo depois que minha mãe morreu..."
Por alguns momentos, fiquei absolutamente sem reação. Jamais tinha visto, ouvido ou sentido nada que fugisse do que é absolutamente ordinário e mundano; nunca acreditara em nada de sobrenatural. Como reagir àquela experiência?? Aquele espelho tinha me parecido tão real e tangível quanto qualquer outro espelho para o qual já havia olhado, exceto pela incômoda sensação de que o quarto refletido nele não era exatamente o mesmo quarto que vira antes e depois...
Durante todo o resto daquele dia, meu sogro quase não falou; é verdade que ele era um homem calado, mas seu silêncio naquele dia espantava até mesmo seu filho, que o conhecia tão bem. Já para mim, que o conhecia tão pouco, a impressão era de que naquele silêncio havia mais palavras do que ele jamais me dirigira.
Naquela noite, apesar do cansaço enorme que sentia, não conseguia dormir. Quando fomos deitar, meu namorado me disse que o espelho que ficava no quarto dos pais tinha sido um presente do seu pai para a sua mãe, e a dor das lembranças fez com que ele o doasse logo depois que ela morreu. O fato de eu tê-lo visto, e ter me visto nele, quando ele não estava mais lá há anos, me assombrava.
Alguns dias mais tarde, fizemos as malas e fomos para a praia, meu namorado, meu futuro sogro e eu. A viagem foi curta, e ao chegarmos lá fomos imediatamente descarregar o carro. Como meu sogro queria já levar algumas coisas pessoais embora, tínhamos levado muitas caixas vazias, e por isso tivemos que fazer várias viagens ao apartamento e de volta ao carro. Na primeira dessas viagens, entrei no quarto de casal, que meu sogro dividira com sua esposa, para deixar umas caixas. Tendo acabado de viajar, minha inevitável vaidade feminina me fez olhar no espelho que havia em cima de uma cômoda, para checar o estado do meu cabelo. O cabelo até que não estava ruim, mas reparei que, por alguma razão que não sabia explicar, o quarto que via refletido no espelho me pareceu diferente do que o que eu vira quando tinha entrado nele. "Que coisa bizarra", pensei. Mas, sendo de natureza prática, ignorei essa impressão e me apressei a descer novamente para ajudar a trazer o restante das coisas.
Quando terminamos de levar tudo, foi a hora de criarmos coragem para limpar o apartamento, que realmente estava num estado lastimável; fazia pelo menos um ano que ninguém sequer entrava nele, e a poeira, unida à maresia, cobria com uma camada espessa, esbranquiçada e pegajosa cada móvel do lugar. Depois da sala e do banheiro, foi a hora de limpar o quarto do meu sogro. A primeira coisa que notei quando entrei nele foi que o espelho tinha sido tirado de cima da cômoda. "Alguém deve tê-lo levado para a área de serviço para lavar", pensei. Mas quando eu fui até a área pegar mais panos, o espelho não estava lá. A essa altura, estava bastante intrigada e perguntei, então, ao meu sogro, se ele sabia quem havia tirado o espelho do quarto, e onde ele estava. Mal havia perguntado, reparei que ele havia ficado visivelmente pálido. Meu namorado, que tinha me ouvido, se apressou a perguntar, de que espelho eu estava falando? "Ora, do espelho que estava em cima da cômoda, no quarto de casal!" Eu tinha me olhado nele quando entrei lá, há menos de duas horas! Meu sogro permanecia mudo. Seu rosto, no entanto, expressava sua visível consternação. Foi meu namorado que finalmente retrucou: "Mas o espelho que tinha lá foi tirado logo depois que minha mãe morreu..."
Por alguns momentos, fiquei absolutamente sem reação. Jamais tinha visto, ouvido ou sentido nada que fugisse do que é absolutamente ordinário e mundano; nunca acreditara em nada de sobrenatural. Como reagir àquela experiência?? Aquele espelho tinha me parecido tão real e tangível quanto qualquer outro espelho para o qual já havia olhado, exceto pela incômoda sensação de que o quarto refletido nele não era exatamente o mesmo quarto que vira antes e depois...
Durante todo o resto daquele dia, meu sogro quase não falou; é verdade que ele era um homem calado, mas seu silêncio naquele dia espantava até mesmo seu filho, que o conhecia tão bem. Já para mim, que o conhecia tão pouco, a impressão era de que naquele silêncio havia mais palavras do que ele jamais me dirigira.
Naquela noite, apesar do cansaço enorme que sentia, não conseguia dormir. Quando fomos deitar, meu namorado me disse que o espelho que ficava no quarto dos pais tinha sido um presente do seu pai para a sua mãe, e a dor das lembranças fez com que ele o doasse logo depois que ela morreu. O fato de eu tê-lo visto, e ter me visto nele, quando ele não estava mais lá há anos, me assombrava.
Horas mais tarde, senti sede e fui buscar água na cozinha. No caminho, passei pelo quarto do meu sogro. Incrivelmente, ouvi uma voz masculina vindo do quarto, e percebi que ele falava, baixinho, como se conversasse. Então me dei conta: ele estava conversando com sua esposa morta. Não conseguia ouvir as palavras, mas no tom da sua voz ouvi emoções que eu nunca ouvira sair da boca daquele homem sério, taciturno. Ouvi amor, saudades, talvez arrependimento. Aquele tom de voz, vindo daquele homem tão fechado e aparentemente frio, me emocionou até as lágrimas. Sentindo-me intrusa naquele momento tão íntimo, voltei para o quarto, sequer lembrando de tomar a água que tinha ido buscar. Deitei-me e adormeci imediatamente.
Nos dias que se seguiram, nunca mais vi o espelho. Confesso que, todas as vezes que passava pelo quarto do casal, arriscava uma olhadela para onde ficava a cômoda, numa esperança vã. Meu sogro e meu namorado não voltaram mais a falar naquele assunto. Mas depois daquela primeira noite, meu sogro pareceu ficar mais accessível, mais falante e, principalmente, mais calmo.
Nos dias que se seguiram, nunca mais vi o espelho. Confesso que, todas as vezes que passava pelo quarto do casal, arriscava uma olhadela para onde ficava a cômoda, numa esperança vã. Meu sogro e meu namorado não voltaram mais a falar naquele assunto. Mas depois daquela primeira noite, meu sogro pareceu ficar mais accessível, mais falante e, principalmente, mais calmo.
E o apartamento nunca foi vendido.