Desde pequena, Alice se esforçara para se encaixar no mundinho pequeno, confortável e seguro da aldeia onde morava. Lá, a vida corria como devia ser. Crianças brincavam inocentes; adultos casavam-se e faziam filhos; e velhos contavam histórias, que sempre tinham finais felizes e envolviam crianças que brincavam e adultos que se casavam. Menos a avó de Alice: suas histórias envolviam lobos que devoravam meninas que eram diferentes das outras. Ela sabia que Alice era diferente. E Alice sabia que a avó sabia, e que também sabia que o lobo a visitava todas as noites, quando tentava em vão sonhar sonhos de menina. E todas as manhãs ela olhava a avó e a avó a olhava, e sabia. Alice não sabia se temia mais o lobo ou sua avó.
Um dia, a avó de Alice se mudou para a aldeia vizinha, na qual só se chegava atravessando uma densa floresta. Alice respirou aliviada. E sua vida voltou a ter uma aparência de normalidade.
Até que sua avó adoeceu seriamente, e sua mãe pediu que ela fosse até lá cuidar dela.
"Não quero ir, mamãe, tenho medo da floresta!!" disse a menina.
"Medo de quê, boba, não há nada na floresta, são histórias... tua avó precisa de você."
Alice ainda tentou lutar contra a mãe, mas sabia que era uma luta perdida. Enfim, arrumou suas coisas e partiu em direção à aldeia da avó.
Após algumas horas de caminhada, a menina chegou à floresta que tantas vezes vira em seus sonhos de vigília. Parou embaixo da primeira árvore e respirou fundo. "Daqui não há volta", pensou. E pôs-se novamente a caminhar entre as árvores, que iam ficando maiores à medida que avançava. Alice fechou os olhos e prosseguiu.
Após caminhar por alguns minutos, enroscou-se em algo que pendia das árvores. Abriu os olhos e viu uma longa fita verde. Após pensar alguns segundos, decidiu pegar a fita e levá-la consigo. Colocou-a dentro da cesta onde levava os remédios para a avó e seguiu em frente.
Algumas horas depois, chegou à casa da avó. A velha estava na cama, e parecia a Alice que havia encolhido e envelhecido muito além de seus anos. Seus olhos eram imensos e fundos, e neles a menina reconheceu um sentimento familiar. "Meu Deus, ela está com medo", pensou.
"Do que você tem medo, vovó?" perguntou Alice.
"Tenho medo do lobo!" respondeu a velha. "Vem aqui, minha neta, me abraça enquanto é tempo, que hoje à noite o lobo vai me levar..."
E Alice a abraçou.
Na manhã seguinte, Alice levantou-se para dar o remédio da avó e encontrou-a morta na cama. Em seu rosto arroxeado, os olhos imensos ainda guardavam uma expressão de incredulidade. E em torno do seu pescoço, bem apertada, ainda estava a fita verde.
10 comentários:
Quantas surpresas na densa floresta de fita verde no cabelo.
Amei a estória. Very, very!
Beijos!!!
De fato o texto de Guimarães Rosa redesenhou uma visão da vida de Chapeuzinha como nunca pensei alcançaria ler. Ademais, diante da proposta do Luiz, fez surgir textos com outras visões maravilhosas como este aqui.
Parabéns Dulce.
Um forte abraço
Sady
Dulce,
Você me assustou.Buuuu!
Você recriou um não-conto-de-fadas para adultos.Parabéns,um conto repleto de insights intrigantes com todos os elementos de um terror psicológico que vai aumentando conforme a a menina adentra na densa floresta escura da sua própria psique doentia.Primoroso.Arrisco dizer que é seu melhor texto.Beijos.
Dulce, adorei o texto. E gostei ainda mais de estar linkada nele.
Um beijo.
Senti muito orgulho de você hoje. Que tal lermos os grandes clássicos infantis para resgatar nosso passado?
Beijos!!!
Você tem razão, quantos lobos a gente enfrenta (medo, morte, perigos de todos os gêneros...). Até a fita, tão inocente, anda matando gente! Gostei bastante! Parabéns!
Dulce, mais um conto fabuloso! Sua narrativa é muito sutil, o que nos prende, e seus golpes são fortes, o que nos cativa. Parabéns, estou ansioso pelo próximo texto! Um beijo, boa sorte!
E a nação brasileira clama: queremos mais um conto de Dulce Spinelli!
Oi gostei do seu blog, visite o meu de textos pessoais, espero que goste, obrigado.
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